João Nogueira e Luiz Melodia - Feitio de Oração
Quem acha vive se perdendo
Por isso agora eu vou me defendendo
Da dor tão cruel desta saudade
Que, por infelicidade,
Meu pobre peito invade
Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia
Por isso agora lá na Penha
Vou mandar minha morena
Pra cantar com satisfação
E com harmonia
Esta triste melodia
Que é meu samba em feito de oração
O samba na realidade não vem do morro
Nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce do coração.
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Foi no fim de 1932 que, nos estúdios da gravadora Odeon, o maestro Eduardo Souto cruzou o caminho de um jovenzinho lá pelos 20 anos, magro, cabelo repartido ao meio e óculos de aro de metal. Postado ao piano, o rapaz esperava para participar de uma gravação com Francisco Alves. Por acaso, naquele mesmo dia Noel Rosa estava em uma sala de gravação vizinha ensaiando as próprias composições. Surgiu aí, então, uma das parcerias mais profícuas da música brasileira.
O maestro Souto, ouvido aguçado, não pôde deixar de perceber a beleza de uma melodia que o tal rapaz, chamado Osvaldo Gogliano, o Vadico (1910-1962), dedilhava timidamente ao piano enquanto se exercitava. “De quem é a melodia?”, perguntou o maestro. “Minha”, respondeu o rapaz sem levantar os olhos. “Tem letra?” “Não.” Apesar do pouco que tinha ouvido, o maestro sabia que não estava diante de um compositor qualquer. A música do rapaz o tinha capturado desde a primeira frase melódica. Não era uma harmonia de soluções fáceis. A passagem da primeira para a segunda parte era de uma complexidade incomum, levando-se em conta as fórmulas prontas que dominavam a maioria das canções populares.
Sem pensar mais, o maestro correu até o estúdio vizinho e foi chamar Noel Rosa. Com o letrista a tiracolo, fez as devidas apresentações. “Este é o Vadico, Noel”, disse, referindo-se ao apelido do pianista. “Ele veio de São Paulo, e acho que vocês deviam pensar em trabalhar juntos. Ouça essa música que ele fez.” Vadico então tocou a sua composição enquanto era observado com atenção por Noel, que apoiara o queixo deslocado sobre a palma da mão direita. Ouvida a canção, catou o poeta uma caderneta e se pôs a rascunhar uma letra improvisada, marcando as inflexões e o número de sílabas que deveria ter cada frase musical.
Noel só voltaria a falar com Vadico dois dias depois. “Tenho a letra”, disse. Vadico correu ao piano, e o poeta começou a entoar os primeiros versos. “Quem acha vive se perdendo/ Por isso agora eu vou me defendendo/ Da dor tão cruel desta saudade/ Que por infelicidade/ Meu pobre peito invade”. O pianista adorou a letra e ainda mais o título: "Feitio de Oração".
A canção foi gravada por Francisco Alves e Castro Barbosa na própria Odeon, em 1933, atingindo grande sucesso. A música marcou ainda o início da projeção de Vadico como compositor. Ele havia se mudado de São Paulo dois anos antes, deixando um emprego como datilógrafo. Ainda na capital paulista, foi músico da noite em cafés e hotéis e participou de pequenos conjuntos, enquanto tentava, sem sucesso, ter seus sambas gravados. Foi no Rio, como pianista da Odeon, que sua carreira começou a deslanchar, e foi em Noel que encontrou seu maior parceiro. Com ele comporia 11 canções entre 1933 e 1936, tendo muitas se tornado clássicos da música brasileira, como "Feitiço da Vila", "Conversa de Botequim" e a própria "Feitio de Oração".
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Fonte: Revista Bravo - 100 Canções Essenciais da Música Popular Brasileira
Colaboração: Fabio Eça.