Maria Bethânia - Carcará
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Num vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que homem
Carcará
Pega, mata e come!
Carcará...
Lá no sertão
É um bicho que avoa que nem avião
É um pássaro malvado
Tem o bico volteado que nem gavião
Carcará...
Quando vê roça queimada
Sai voando, cantando,
Carcará
Vai fazer sua caçada
Carcará
Come inté cobra queimada
Mas quando chega o tempo da invernada
No sertão não tem mais roça queimada
Carcará mesmo assim num passa fome
Os burrego que nasce na baixada
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Num vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que homem
Carcará
Pega, mata e come!
Carcará é malvado, é valentão
É a águia de lá do meu sertão
Os burrego novinho num pode andá
Ele puxa no bico inté matá
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Num vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que homem
Carcará
Pega, mata e come!
Carcará...
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Nasceu no Zicartola, bar de Dona Zica e do sambista Cartola, no Rio, a idéia de criar o show Opinião. Seria um manifesto contra a ditadura a estrear em dezembro de 1964, juntando as composições de Zé Kéti, um sambista urbano, a moça de classe média alta Nara Leão e o nordestino João do Vale. Este ao lado de João Cândido, escreveu "Carcará", canção de protesto que, primeiro na peça e depois nos festivais, virou emblema de resistência ao regime militar e poema de denúncia contra as mazelas sociais brasileiras.
O maranhense João do Vale trouxe da paisagem do sertão a imagem do carcará, tipo de gavião que, quando sente fome, "pega, mata e come", que tem "mais coragem do que homem", como dizem os versos. Na peça de Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Armando Costa e Oduvaldo Vianna Filho, com direção de Augusto Boal, foi a diva da bossa nova Nara Leão quem entoou primeiro as proezas do carcará. Enquanto. Enquanto Zé Kéti narrava o drama urbano e João do Vale radiografava o sertão, Nara, como descreve Ruy Castro em "Chega de Saudade", se apresentava de camiseta listrada de preto, vermelho e branco (cores da plumagem do animal), com mangas arregaçadas, calça Lee de veludo gelo e tênis cor de tijolo. "Quando ela começava o Carcará, a platéia sentia um frisson. Cada vez que Nara ajeitava a franja, era como se Castelo Branco o presidente estivesse sendo fisicamente varrido da cena brasileira", escreve Castro.
Mas, se Nara vinha de Ipanema e morava de frente para o mar, a baiana Maria Bethânia, não. E foi ela quem imortalizou Carcará. Em fevereiro de 1965, Bethânia subiu ao palco e encarnou na voz e nos gestos a valentia épica e simbólica da ave de rapina. As imagens da época mostram uma cantora franzina com um contrastante vozeirão e cabelos escuros, presos atrás da cabeça. Bethânia estufa o peito, arregala os olhos e grita com potência ímpar os versos desse inventário de rudezas: "Carcará é malvado, é valentão/ É a águia lá do meu sertão", exaltam os versos. "Carcará/ Pega, mata e come/ Carcará/ Num vai morrer de fome..."
No show Opinião, a música vinha seguida de um trecho declamado em que Bethânia cita estatísticas dos problemas sociais do país: "1950, mais de 2 milhões de nordestinos viviam fora de seus Estados natais; 10% da população do Ceará emigrou; 13% do Piauí; 15% da Bahia; 17% de Alagoas". A cada número anunciado, virava o corpo em direção a um dos microfones pendurados sobre o palco, alvoroçando a platéia e culminando com o refrão incendiário: "Pega, mata e come".
Mas, se o Opinião foi um estrondo, deixou às moscas o Zicartola, bar onde nasceu. Com as apresentações do show no shopping Siqueira Campos, as estrelas que davam o ar da graça no bar do sambista – Zé Kéti e João do Vale batiam ponto por lá – e também o público passaram a freqüentar assiduamente as apresentações. O Zicartola, que teve que sustentar as atrações fixas Nelson Cavaquinho, Geraldo Babão e a mulata Teresinha. Fechou as postas quando o Opinião ainda estava em cartaz.
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Fonte: Revista Bravo - 100 Canções Essenciais da Música Popular Brasileira
Colaboração: Fabio Eça.