O ritmo baiano criou carreiras milionárias e alimenta uma indústria cujo ápice é o Carnaval
Por: Natália Rangel
Atualmente, em Salvador, quando surge um empreendimento novo num bairro nobre da cidade cujo dono ninguém conhece, a primeira ideia que ocorre às pessoas da vizinhança é que o proprietário seja “algum artista da axé music”. Isso não acontece por acaso. Afinal, desde a explosão desse gênero musical no Carnaval de Salvador em 1985 os artistas baianos se profissionalizaram, criaram bem- sucedidas produtoras e constituem hoje um dos nichos empresariais que mais faturam no Estado. Apenas nas festas de momo a cidade movimenta cerca de R$ 1,2 bilhão, segundo a Empresa de Turismo de Salvador (Emtursa) – isso envolve 230 grupos carnavalescos, entre trios e blocos, e cerca de 11 mil artistas. E o negócio não se restringe mais ao período carnavalesco. As micaretas (folia fora de época) se espalharam por diversas capitais do Brasil e mantêm a lucrativa festa com repertório para durar o ano todo. É curioso que um dos estilos que mais colecionaram detratores termine por ser um dos únicos, depois do rock e do romantismo de Roberto Carlos, a reunir multidões em estádios de futebol. Ivete Sangalo, por exemplo, cujo DVD gravado no show no Maracanã já ultrapassou a casa das 800 mil cópias, conseguiu atrair recentemente 55 mil pessoas no Festival de Verão de Salvador. Como as grandes estrelas do gênero, ela é tratada atualmente como uma cantora pop – mas o axé está no sangue. Mesmo essa distinção já não faz mais sentido. A crítica ao ritmo, de resto bem antiga, se dava muito pelo fato de a música visar apenas à diversão. Mas ele também possui raízes políticas, como explica o professor Milton Moura, da Universidade Federal da Bahia:
"A ascensão do carlismo (referência à administração de Antônio Carlos Magalhães) esteve muito identificada com a euforia do axé. O estilo deu respaldo ao governo de ACM e vice-versa." Musicalmente, no entanto, o axé tem origem numa rica fusão de ritmos como o forró, o frevo pernambucano, o rock dos anos 1980 e a música afrobaiana e caribenha. Ou como definiu a cantora Margareth Menezes, uma das pioneiras do estilo: o axé é um afropopbrasileiro. Dessa grande diversidade sonora nasceria, em um primeiro momento, um novo "balanço": o samba reggae de Neguinho do Samba e o seu grupo Olodum, que inspirou artistas internacionais como Paul Simon, que veio conferir in loco a sua percussão rítmica. Desse caldeirão de influências surgia o repertório anual do verão, com hits incendiários acompanhados de coreografia para embalar os foliões que seguiam os trios elétricos. Do alto de sua experiência, Ivete faz uma análise equilibrada: "Do ponto de vista musical, o axé é essencialmente um ritmo para o entretenimento. Promove encontros, festa, diversão. Do ponto de vista cultural, é de uma autoestima invejável. Tudo é retratado de forma feliz e ufanista, mantendo acesos os costumes da Bahia." E também a sua usina de criação. Dona de uma agenda de dez shows por mês com cachê estimado em R$ 400 mil, Ivete está à frente de uma produtora campeã, a Caco de Telha, hoje uma holding que abriga diversos artistas. Projetada como vocalista da Banda Eva em meados dos anos 1990, ela atualmente tem um repertório bem afinado com o pop internacional – tanto é assim que abre o show da diva Beyoncé em Salvador no dia 10 de fevereiro. "Faço música. Não me ato em nós de conceitos ou prateleiras", diz Ivete. Livrar-se desse rótulo a que ela se refere não é fácil. Que sirva de exemplo a colega Daniela Mercury, cujo título de rainha do axé não se descolou dela desde a década de 1990, quando lançou o hit "O Canto da Cidade".
Hoje, a cantora, que se alterna entre Salvador, São Paulo, Londres e Paris, mantém uma agitada carreira internacional– em março ela inicia a turnê europeia de lançamento de seu CD Canibália. Daniela reconhece que o axé está mais vivo do que nunca: "É verão, positivo, vibrante. E foi uma escola de sobrevivência dentro da música brasileira." Sobrevivência que se traduz numa crescente profissionalização dos artistas baianos. À frente da produtora Ciel, administrada por Claudio Inácio e por seu marido, Marcio Pedreira, a cantora Claudia Leitte, surgida na banda Babado Novo, na década passada, ilustra outro momento importante dessa indústria que se mantém em pé em plena crise fonográfica. A cantora não faz um show por menos de R$ 350 mil. São 14 apresentações por mês e 168 por ano, com um público que varia de 20 mil a 45 mil pessoas. Claudia reconhece a vinculação do ritmo ao Carnaval da Bahia e lembra o impacto da música "Fricote", considerada uma das precursoras do estilo, lançada por Luiz Caldas em 1985. Tinha na época cinco anos de idade. "É música que não envelhece e não deixa ninguém parado", diz ela. A outra qualidade do axé é evoluir e se transformar. Milton Moura assinala que as primeiras canções funcionavam como celebração de uma identidade cultural e que, com o tempo, o estilo foi se reconfigurando até incorporar um apelo internacional maior. Novas bandas não param de surgir com seus hits e coreografias, exatamente como fez Luiz Caldas há 25 anos. Para esse Carnaval, o grupo Parangolé, que tem forte influência do pagode baiano, já emplacou a sua música de trabalho: “Rebolation”. Ela vem acompanhada de uma dancinha sensual que já promete ser a coreografia do momento. Com esse nome, até gringo entende.
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Fonte: IstoÉ Cultura. Ed. nº 2100. 05/02/2010.
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